quarta-feira, 16 de novembro de 2016

conversa inventada com dona linete

café passado cedinho e os menino no sono. desceu a rua pra ver se encontrava lúcia em casa, mas a danada já tinha ido pro serviço, foi cedo daquela vez, de certo que queria passar na lojinha antes do horário da entrada. lúcia vivia falando daquela sandália que via na vitrine, que ia ficar linda pra ela, que era da cor do vestido de festa, que não tinha outra melhor pra caber nos "pézinho chato que eu tenho" assim que ela falava, e dava risada com um sorriso marcado do tempo e gostoso demais de se ver de perto. mas toda vez que ela ia na loja a moça dizia que já tinha ido tudo, pra ela vir mês que vem e vir mais cedo, sempre mais cedo, que a sandália saia fácil. "eu sou chata né linete? a moça já nem me deixa entrar, fala lá de dentro pra eu vir no outro mês sabe? é que eu devo incomodar demais né? assim, querendo ir em loja de madame com a roupa do serviço... eu já té tenho o dinheiro sabe? pra comprar na vista. mas eu não tenho o de resto parece. eu nem devia de querer ir lá", ai a gente brigava, que eu dizia que ela ia sim e que fosse cedo no mês que vem, que chegasse antes da loja abrir pra garantir a sandália, o cheiro de café tomava conta da sala e ela me jogava um "é né?" com dois olhinhos pretos miúdos e uma risada enorme na boca.

lúcia sempre me cuidou sabe? desde de cedo, desde antes do primeiro menino. ela que me disse o que fazer pela casa, me ensinou os caminho mais curto pros maiores problemas. eu sinto nela uma mãe que também é filha. já viu coisa assim? engraçado dizer isso junto, mas é verdade, uma mãe que também é filha. é isso que eu sinto. a gente se ajuda por aqui, que as vezes a coisa engrossa. seu heitor viaja mais de mês, lúcia reclama da falta do marido, mas reclama sorrindo, que quando ele ta por ai só vejo ela de sexta que é dia de bar, sempre de cabeça baixa, sorriso murcho e olhar perdido. ela vira menos dela. como minha finada mãe me dizia, "minha filha, não deixa homem nenhum tirar você de dentro de você" e eu deixo não. passo firme com os pequenos, que é pra não ser que nem o pai, que se sumiu no mundo, sofrem pouco os dois, que eu amo tanto que nem deixo eles na solta. vivem de jogar bola e ir pra escola. não falta nada na mesa, e quando falta, lúcia me ajuda, assim faço o mesmo por ela. é assim que se caminha a gente por aqui. olha lá moço, naquela ponta da rua mora uma senhora mais velha que nós dois juntos. vive sozinha. sai quase nada, mas é feliz. sabe como eu sei? é que quando ela inventa de passeio passa aqui pertinho da casa, bem na janela que eu fico na costura. e ela canta moço, e como canta moço! uma voz velha e linda de se ouvir. eu faço é questão de parar a costura, e eu sei que ela sabe, a máquina é velha e faz um barulho danado, eu sei que ela escuta e ai ela encosta na parede da casa e acende um cigarrinho de palha, não gosto do cheiro, mas eu deixo. deixo que eu sei que depois de fumar ela canta uma canção inteirinha só pra mim. só pra mim seu moço, eu sei que é. nunca que a gente se viu de frente, mas ela sabe da parada da máquina, eu sei do cigarro, a gente se ajuda assim. a gente caminha. um dia chamo ela pra tomar um café comigo e com lúcia, quem sabe ela não canta aquela da clementina, gosto tanto. quer café moço? o senhor ta gravando? que bom que não é foto sabe, se não ia ter que ir em casa. depois se tira foto, depois que lúcia chegar, quem sabe ela não vem com a sandália dessa vez né?

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