terça-feira, 30 de novembro de 2010

sobre a primeira maria

Maria Pequena vivia de andar na lua. Não havia um só morador do sopé que não conhecia seu jeito aviãozinho de ser. Quando dava na telha voava. Podia até parecer presente, escutando a avó falar do bordado, mas não. Maria Pequena voava... Não controlava sua falta de estar ali, quando dava por si já não era mais possível voltar atrás. As vezes se doía por deixar a avó falando para as linhas, mas viajar sozinha era tão bom que a dor desatinava assim que o General do primeiro batalhão do exército da Córsia vinha lhe pedir ajuda na Segunda Guerra dos Albinos Pregoeiros. Ela aconselhava, mas não se envolvia na disputa. Ser Embaixadora da Terra dos Devaneios não era fácil, mas lhe apetecia o cargo. Ela mesma o havia criado na ocasião da primeira batalha. Maria Pequena voava...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

orgasmo

Apertei seus cabelos com a força que meu corpo tinha, deixei-me levar. Seresta em mim. Ela sabia como me dominar. Sabia do íntimo que em mim calava. Só ela o acordava. Eu desentendia de tudo. Minhas certezas escapavam. Deslizavam na leveza em fúria que seu corpo produzia sobre o meu. Difícil, eu não me persuadia. Ela edifício andares me fazia subir, pouco a pouco domava minhas fantasias. Até conseguir o que queria, até me ter em suas mãos. Lembro de sua voz suave aos meus ouvidos: "Pula. Se me queres, pula!". Lembro de suas unhas traçando estrada em minha pele, dizendo fúria. Lembro da queda, amaciada por seu corpo nu e da espera do dia, que nos fazia deixar de ser um só, que nos fazia duvidar do que a noite havia escrito na pele. Sonhávamos o resto da manha, aguardando a chegada da próxima lua.

domingo, 21 de novembro de 2010

indicação para cena final

Não mire a tela, olhe nos olhos dela, fixos na película com aquele brilho de anseio, querendo ser personagem, querendo vento e corcel, para aquietar peito cheio. Não mire a tela, diga no ouvido dela: "Tua pele colorida, com a luz do filme brilha. Doce encontro nessa sala, minha vida agora cala, para ouvir tua melodia." Não mire ela, nem tela. Feche os olhos. Deixe o cinema falar. Respire a trilha do escuro. Perfume e desejo de beijo. Fim do filme, resta o amor, terno e puro.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

espero

Espero um caminho claro, um vagalume no escuro, uma voz não um zunido, um afago e não um rugido. Espero, como tu espera. Ai sentada sem meias, olhando da tua varanda a rua da tua cidade, o sangue vermelho nas veias, o peito cheio de areia que escorrega entre meus dedos. Espero o desapego, o fim do fogo e do medo, o passado numa fogueira queimando o que já cansei, silenciando o barulho das coisas que eu esperei. Espero como se espera, mãos nos bolsos, sem palavras, o povo do lado me aperta, a vida corre vazia, eu atrás vou dando seta, esperando algum alerta ou um soco que me pare, que me faça desespero, que me tire dessa espera, que me mexa, que me mude!



Espero



não esperar mais

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Amanha eu falo

Sentei na varanda. Mãos na toalha de renda e um livro para bordar minhas frases quietas. Sabia que por ali ele passaria, sabia que ele viria, com a mochila em um dos ombros, assobiando alguma canção bonita. Eu trancada nos próprios sapatos nada falaria, talvez um sorriso para o livro ao meu lado maquiando a vontade de sorrir em frente, de sorrir nele, de abrir os braços e a blusa para ele e dizer "Vem, que eu te entrego minha boca nua, que eu aprendo  a ser só tua. Vem me ensina o bom do amor que até hoje eu só fui brasa. Vem queimar meu peito e a casa". Mas nada disse, ele passou, parou de assobiar e dobrou a esquina. Amanha eu falo.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

foto antiga

Guardados os retratos, ele pegou minha mão e colocou confortavelmente contra o próprio peito. Disse-me que fosse sua, que ele levaria meus pés ao fim da história antes de termos lido o começo, que nada mais seria igual. Disse-me que fosse sua, que o som da minha voz era vermelho, que a cor do meu pulsar era música para o ouvido dele. Disse-me que fosse sua, que na minha nudez eu era a rainha da calma, a senhora do tempo que ele sempre procurou para poder tornar-se imortal. Disse-me que fosse sua. E eu fui. Fui de novo e sempre. Renovei minha armadura de mulher com o prazer que buscava para ele. Prazer que eu não entendia direito, mas que pelas palavras doces que ficaram em minha pele naquele dia frio, enquanto contávamos pessoas nas fotos antigas, eu acreditava existir. Fielmente acreditava. Como se acredita na santa quando promessa. Eu acreditava. Fielmente acreditava. Como folha que ganha o vento com a incerteza de onde vai e com a fé de poder ir. Eu acreditava. Fielmente acreditava. Mas ele não... Partiu. Deixou-me nua, de corpo e de coragem. Deixou-me cheia da culpa que não era minha. Disse-me que mudou de planos. Que a vida segue. Me mandou um cartão da capital. Arrancou a fé do meu corpo como fazia com meus vestidos. Já não mais rainha do tempo, passei a contar pessoas, encostada na janela onde víamos aqueles velhos álbuns. Virei foto. Imortal na minha certeza de nunca mais ser dele. Perdi a cor. Guardei-me, desbotada com os pés no fim da história e entre os retratos.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

chato

Eu quero valorizar toda esta insensatez e discutir estas razões, e conhecer os teus porquês. Eu quero me antecipar a qualquer forma de rigidez, aprimorar o mau humor e corrigir a lentidão da correção destes problemas.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

ao poeta descalço:

Era tarde já. O outrora brigava com o céu pra parecer aurora, de nada adiantava, cores diferentes, mais cinzas que laranjas. Era tarde já. Um calçado de cadarços estragados cruzou o cimento duro em direção a ponta de mato que abrilhantava o jardim de pedrinhas. Ali descalçou-se, virou pé, pisou grama, disfarçou-se de minhoca e sorriu com o mindinho, depois com o dedão, depois outros dedos. Era tarde já, mas algo havia acontecido, noite clara e borboletas anunciando asas a quem dormia: um poeta descalço havia sido plantado.


onde o poeta descalço mora

o som que o poeta descalço faz

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

jogo de domingo.

Emblema do time no peito, tênis de futebol, uma camisa que passa dos joelhos, mas que mostra o número e o nome do artilheiro. É assim que o moleque vai. Ver o jogo com o pai. A euforia, a angustia, a ira, a paixão, sentimentos grandes demais pra caberem dentro de alguém de cinco anos, mas isso não vale pra ele. Quase um adulto quando o tema é o time, escalação na ponta da língua, sabe mais que o técnico, que segundo ele sempre erra a escalação e a substituição do segundo tempo (se o pai deixasse ele xingava), entoa todos os hinos com a força que seu tamanho aguenta. A única coisa que ele não entende ainda é a derrota. O controle emocional que demonstrava ao falar das táticas e jogadas ensaiadas que havia escutado na conversa do pai com o padrinho se vai. Assumida a condição de criança ele chora, pede colo e bate pé. A tristeza é tão grande que vira cansaço, o sono chega antes do fim do jogo. E o ombro paterno vira porto seguro. Volta dormindo pra casa. Mal sabe ele que com passos vagarosos, dando tempo a chuva que acompanha a volta e lava o medo de mostrar fraqueza, enquanto acalenta o filho e diminui o peso da partida perdida, enxugando as lágrimas no cabelo do pequeno, o menino mais velho também chora.